sábado, janeiro 16, 2016

HISTÓRIAS DA VIDA TRÁGICA

BAILE DA PINHATA

"Asdrubal tinha 40 anos de idade. Solteirão. Não tanto por vontade, mas por falta de jeito. Para com as mulheres. Só conseguia enfrentar as casadas. De preferência com amigos seus. Tratava-as como irmãs, como prolongamentos dos respectivos maridos. Até conseguia brincar quando o picavam, reclamando por ele nunca apresentar uma namorada. Não me digas que viraste, tentavam envergonhá-lo. Respondia sorridente e seguro que ainda não tinha nascido a mulher que o merecesse e como a única que o poderia interessar - referia-se galanteador à interlocutora - tinha casado com o seu melhor amigo...
Mas Asdrúbal reagia assim para disfarçar a sua timidez para com as mulheres e a sua inferioridade para com os amigos casados. Não era bem uma frustração. Era apenas uma sensação de vazio, de incompleto. No fundo invejava os amigos casados, a naturalidade com que cada um deles se referia no possessivo à respectiva mulher, o chilreio das crianças. Já respondera tantas vezes que ainda não tinha nascido a mulher que o merecesse que acabou por acreditar nessa polida explicação. Os amigos apresentavam-lhe solteiras, divorciadas, jovens viúvas com casa posta. Para o desemperrar, para o ajudar na dificuldade inicial. Mas Asdrúbal, sempre que se apercebia da potencialidade matrimonial da apresentação embatucava. Perdia o á-vontade, corava, engasgava as palavras. Olhava para a mulher e avaliava-a fisicamente. Não como ela era no momento, mas como viria a ser dali a vinte anos. Antecipava de imediato as décadas, e via-a gorda e flácida, a ralhar com ele, a reclamar por tudo e por nada. Asdrúbal fora criado por uns tios. E a Tia passava a vida a recriminar tudo e todos. O marido, por chegar tarde e o jantar estar frio, por chegar cedo e o jantar não estar pronto. O Planeta, por ser verão e estar calor, por ser inverno e o raio do tempo nunca mais aquecer. Os vizinhos, por terem filhos, que barulheira, por não terem, queriam levá-lo todo para a cova. Asdrúbal bem presenceara a vida amargurada do Tio, que tudo ouvia e calava para não potenciar mais gritaria. A Tia era gorda e anafada. Mas em solteira fora elegante e vistosa, conforme a caprichada fotografia em cima da televisão o comprovava. E Asdrúbal desde tenra idade que associara o casamento à obesidade feminina e às reclamações matriarcais. Mais, não se devia confiar numa mulher que fosse elegante e delicada aos vinte anos, pois que aos cinquenta seguramente estaria transformada numa megera anafada, flácida e exaltada. Bastava conhecer as mães delas para a confirmação genética. Por isso, nunca exercitara os modos da sedução, as palavras do cortejo, ainda menos os arrebates da paixão transportados no perfume de uma flor ou na graciosidade de um verso. Quando frequentava os bailes, não dançava. Ficava-se pelo bar a meter imperiais, a descascar tremoços. Normalmente servia de cabide aos amigos que lhe confiavam os blusões e os casacos para se poderem libertar na dança, na sedução dos corpos, até para dançar mais apertadinho naquela triste figura de esfregar o toucinho - como menosprezava Asdrúbal com algum amargo pelas uvas verdes. Acabou inevitavelmente por ser o padrinho de casamento de todos os seus amigos. E refugiava-se no Benfica, primeiro e derradeiro objecto do seu afecto.


Mas Asdrúbal nem sempre fora assim. Pelos vinte e dois anos apaixonara-se por uma professora, recém-formada pelo Magistério Primário de Caldas da Rainha. Era uma morena elegante e alegre, olhos vivos e riso fácil. Asdrúbal nunca se aproximou ao ponto de chegar à fala. Mas seguia-a de longe. Arranjava maneira de passar pela Escola às quatro e meia da tarde quando ela saía.Todos os dias tomava o pequeno-almoço na pastelaria da esquina para a ver bocejar em frente ao galão com torradas, com uma suave olheira tão sensual. Como ele apreciava aqueles momentos de intimidade matinal. Imaginava uma mesa na marquise com vista para o jardim relvado, um centro de flores frescas e naturais a perfumarem um pequeno almoço tomado por ele, pela professora e por duas crianças louras, enquanto trocavam gestos de carinho e palavras de amor. A cena não era original. Vira-a na televisão a publicitar uma manteiga com pouco sal. Mas não importava. A cena era tão bonita, que bem poderia servir para si. No seu devaneio Asdrúbal apreciava a olheira da professora bem sabendo ter sido o causador da falta de descanso nocturno. E isso bastava para o estimular de novo. Asdrúbal, em cada manhã antecipava a sua felicidade futura, menosprezando pormenores como a cor do cabelo das ficcionadas crianças. O quadro geral é que importava. Naquela fase, queria lá saber de quem tinham herdado o louro do cabelo. Por isso, Asdrubal fazia tudo para ver a professora, numa fidelidade canina, só para alimentar os seus sonhos de felicidade. Nunca revelou aos amigos a sua calada paixão. Mas eles descobriram o destino dos olhares mortiços, o incómodo quando comentavam as pernas da nova professora. Tentaram ajudar, fazendo chegar à professora a informação. Ela inicialmente riu-se. Mas passou a enfrentar os olhares de Asdrubal, num convite ao cumprimento, à conversa. Mas Asdrúbal enrolava, enrolava. Nunca mais avançava. Numa ocasião, provocante, ela proferiu um abrangente bons-dias, como quem se dirige a todos os presentes. Asdrúbal sentiu que a frase era para si, percebeu que aquela era a sua oportunidade e tentou responder. Mas com a ansiedade a língua e os lábios secaram. Abriu a boca, mas não emitiu qualquer som. Corou, ainda mais envergonhado. À noite escrevia extensas cartas apaixonadas, delirando o seu amor, explicando a sua timidez, protestando a seriedade da sua intenção, garantindo as suas honestidade e capacidade de trabalho. Mas nunca tivera coragem para enviar as cartas. De manhã rasgava-as, como se a luz do dia revelasse o ridículo dos sentimentos. Os amigos insistiam com ele, davam-lhe conselhos. Garantiam a receptividade. Ele só tinha que avançar, caramba.
Combinaram que no Baile da Pinhata, Asdrúbal teria mesmo que se decidir. Nem que tivessem de o arrastar. Ele teria que convidar a professora para dançar e depois deixava-se a natureza seguir o seu curso. Num frenesim, todos colaboraram na preparação da operação. Como se fosse militar. Visitaram o salão de baile com antecedência, medindo os metros, levantando croquis, antecipando as prováveis localizações da professora, prevendo trajectos, configurando procedimentos. Para cada alternativa, planearam a colocação de um elemento para a necessária obstrução a algum espontâneo que se antecipasse com inconveniência a Asdrubal no convite à professora Cada um dos topos do salão mereceu um Plano alternativo que ia da A a D. Treinaram individual e colectivamente. Até escolheram os mais musculados para pegarem em Asdrubal pelos braços, no caso de ele manter as costumadas hesitações. Ou seja, ia ser a sério.


Passaram ao guarda-roupa. Asdrúbal andava sempre de jeans, camisa de flanela e blusão preto de cabedal. Após exaustivo e renhido debate, concluíram que aquela roupa não era digna de uma professora primária. Adivinhavam que ela aceitaria Asdrubal mesmo de fato-macaco ou em cuecas. De preferência sem elas. Mas era uma professora primária, símbolo de respeito na terra. Por isso decidiram que Asdrubal devia apresentar-se de fato inteiro. Não de fato escuro, solene em demasia, mas numa cor alegre e jovem que ligasse bem com o seu tom de pele e transmitisse frescura e leveza.
Definido o conceito, compraram revistas da moda. Fizeram recortes. Discutiram acaloradamente. Finalmente, chegaram a consenso perante um modelo azul-marinho envergado com natural elegância por um fulano no convés de um iate de copo na mão. Sim, senhor. Asdrubal era alto, era elegante, estava habituado a segurar o copo, só lhe faltava o fato e o iate para encarnar aquela sofisticada personagem. Aquele fato era o ideal. Definitivamente. Foram de propósito a Lisboa. Correram as lojas da Baixa. A Rua dos Fanqueiros, a Augusta, a Aurea. Mas não encontraram aquele específico tom de azul-marinho. Decidiram recorrer ao Faustino. Em tempos o Faustino fora do grupo, mas deixara a boémia por causa da loja do pai. Tinha que abrir a loja diariamente e não se podia deitar tarde. Ao sábado de manhã, visitavam-no quando chegavam da noite. E brincavam com ele. Do maior ao mais pequenino, compre no pronto-a-vestir Faustino. O trabalhador, saudoso de chegar àquela hora a casa e tolerante com a irreverência dos amigos numa compreensão do bafo pesado, apenas pedia com responsabilidade profissional para não dizerem a graça em frente às empregadas. Ele era o patrão e não podia admitir públicas faltas de respeito.
Conhecedor, o Faustino advertiu que seria difícil encontrar aquela cor. Que raio de ideia, tanto fato decente que ali tinha para vender e tiveram logo que escolher uma cor daquelas. O mais que podia fazer era telefonar para os fornecedores, a saber da existência pouco provável dum fato azul-marinho. Se calhar só por encomenda. Uma semana depois, Faustino tinha a solução. Sempre fora competente e desenrascado. Havia uma pequena fábrica em Santiago de Riba Ul, concelho de Oliveira de Azeméis, que garantira ter aquele padrão. Enfim, presumia-se que a cor era a mesma já que a explicação telefónica era sempre contingente. Tinham fabricado uma encomenda de dez fatos e sobrara um. Se quisessem, pedia-se à consignação para ver se servia. Dois dias depois, o fato estava na loja do Faustino. O tom não era exactamente o azul-marinho pretendido. Era mais aberto, mais claro. Mas enfim, já era tempo de se tomarem decisões. Não podiam começar de novo a busca. Convocaram Asdrubal. Ele compareceu sem saber ao que ia. Reagiu que nem pensassem. Não só não iria ao Baile de fato inteiro, ainda menos naquela figura apaneleirada. Os amigos insistiram, mostraram-lhe o recorte da revista, garantiram que ele iria muito bem posto, muito moderno. Salientaram que até os gajos com iate se vestiam daquela maneira. E recordaram que uma professora primária estaria à espera que o seu namorado não fosse exactamente o zé-da-esquina, mas alguém que se evidenciasse, embora discretamente, pelo seu moderno bom-gosto. Vocês acham ? perguntou Asdrubal esperançoso. Todos acharam convictamente. E ficou decidido.
Faustino, habituado, ajudou na marcação das bainhas das pernas e das mangas. Meteram dois centímetros para dentro no gancho das calças para realçar a virilidade, à toureira, e cinco centímetros na costura das costas para evidenciar os ombros largos de Asdrubal.
A costureira do Faustino no dia seguinte tinha a obra pronta. De sua iniciativa reforçara os enchumaços nos ombros. Compareceram entusiasmados para a última prova. Assentava que nem uma luva. Mas o Asdrúbal, seguramente por falta de hábito, não se sentia confortável. Alvitraram que deveria andar com o fato um dia ou dois para se ir habituando. Os fatos eram como os sapatos. Só o uso lhes dava a forma, garantia a opinião experiente de Faustino. Asdrubal rendeu-se. Levou o fato para casa. E uma camisa branca.
Ainda tinha oito dias para o experimentar. Não tinha pressa, já que iniciar o uso significava assumir em definitivo a decisão e Asdrubal sentia um desconforto latente, uma sensação de perigo, como um aviso que os seus falecidos Pais lhe estivessem a enviar do outro mundo. Percebia que não era só a antecipação do esforço que teria de fazer no Baile da Pinhata, violentando toda a sua timidez. Havia algo de inexplicável na sua resistência à ideia. Por isso, foi atrasando a rodagem do fato. Tentou sossegar-se, convencendo-se de que o mal-estar lhe advinha do passo decisivo a que seria obrigado em prol da sua felicidade pessoal. Mas os olhos e as formas elegantes da professora valiam o esforço.


Sábado de manhã decidiu vestir o fato. O Baile da Pinhata era à noite. Não podia adiar mais. Resolveu andar todo o dia com o fato para se habituar. Vestiu uma camisa branca. Ainda tinha a nova para a noite. Por isso, podia sujar aquela. Agora que se via ao espelho, sózinho e sem os tagarelas a martelarem-lhe a vontade, estranhou o azul claro da silhueta. Que raio, na loja do Faustino o fato parecera mais escuro. Devia ser da luz. Recordou que na loja a luz era artificial. E no Baile da Pinhata também. Por isso, tinha que desconsiderar a luz natural.
Buscou uma gravata. Mas, apesar de não ser muito entendido, percebeu que nenhuma das duas que possuía combinava com aquele tom de azul. Resolveu voltar ao Faustino. Ele dominava a matéria, seguramente teria uma gravata que não berrasse muito com o fato. Ainda bem que estava a provar o fato de manhã porque à tarde o Faustino estava fechado - pensou aliviado. E pôs-se a caminho. Saiu colocando as mãos nos bolsos a conferir naturalidade à marcha. Encontrou a vizinha do mini-mercado que de imediato exclamou, estás tão bonito, descansa que vai tudo correr bem. Asdrubal surpreendeu-se com o comentário. Não percebia a que propósito a vizinha se permitia a uma intimidade daquelas. Ainda menos ao que ela se referia com aquele vai tudo correr bem. Logo a seguir, passou pela Praça de Táxis onde o Zeca passava o lustro ao mercedes. É assim mesmo, leão. Ela vai-te cair nos braços. Asdrubal irritou-se. Está a chamar leão a quem ? bem sabe que nada tenho a ver com essa gente. A exaltada profissão de fé benfiquista nem lhe permitiu ouvir a segunda frase. Até à loja percebeu que as pessoas o olhavam com insistência e simpatia. Pensou que seria apenas por não estarem habituados a vê-lo de fato completo. Estava longe de saber que todos o apoiavam incondicionalmente na conquista da professora.
A culpa era da costureira do Faustino. Ouvira as conversas dos rapazes, assistira às diligências do patrão, emendara o fato e divulgara pela terra o segredo. Provavelmente àquela hora até a professora primária sabia que o fato novo lhe era destinado. Só Asdrubal guardava para si o íntimo segredo da sua paixão. Pelo caminho, Asdrubal incomodou-se com o desempenho da vestimenta. Com o andar, as calças metiam-se no rabo obrigando a puxá-las para fora a cada dez passos e o casaco apertava-lhe os ombros não lhe permitindo mexer os braços. E uma semana antes a porcaria do fato até lhe caíra tão bem. Se calhar engordara. Devia tê-lo vestido antes. Agora já não dava para emendar.
O Faustino, uma vez mais competente, escolheu uma gravata azul escura com uma malha fininha no tom aproximado do fato. Não era uma obra-prima, mas desenrascava. Não se conteve e desabafou que era difícil encontrar uma gravata compatível com um fato daqueles. Asdrubal afligiu-se: oh Faustino, mas fica assim tão mal ? O profissional de moda sossegou-o que não se ralasse; Não seria pela gravata que ele poderia ser criticado.
Asdrubal almoçou bem. O nervoso abria-lhe sempre o apetite. Quando se levantou, as calças, puxadas pela leve dilatação ventral, ainda se enfiaram mais no rabo. Raios, não se lembrara disso. Decidiu não jantar para amenizar o incómodo. E, à noite, não despiria o casaco para que não lhe vissem o rabo vincado. O pior seria dançar com os braços quase imobilizados. Só lhe restaria dançar devagar, devagarinho, se calhar a esfregar o toucinho. Corou com a antecipação das sensações. E sentiu as calças ainda mais apertadas.
Reuniram-se no Lila. Para a bica e para fazer horas. O Baile estava marcado para as nove, nunca começava antes das dez e só os casados e as namoradas acompanhadas pelas mães chegavam antes das onze. Os solteiros chegavam só pelas onze horas quando todos lá estavam, mostrando falsos alheamento e desinteresse. Como se estivessem ali por favor, a condescender magnânimos na comparência. Obrigavam as namoradas a esperar, para que elas se angustiassem um pouco, temendo que eles não aparecessem. Era a forma de as por à prova, obrigando-as a declinar os convites para dançar que entretanto surgissem, numa fiel e exclusiva espera pelo sempre incerto e imprevisível namorado. Tinha de ser assim para elas perceberem, desde logo, quem mandava. Rapariga que resolvesse não esperar estava feita. Não reatava o namoro, nem que escrevesse uma carta a suplicar perdão e a prometer lençóis. Os bailes exigiam essas provas públicas de fidelidade e de submissão. Em especial o Baile da Pinhata.
Nos últimos dois meses não se dançara por causa da quaresma. E a Pinhata era o baile mais frequentado de toda a programação anual da colectividade. Mais importante ainda que a passagem de ano que via a clientela dividir-se pelas discotecas, naquela época apelidadas de boites. O Baile da Pinhata era assumido como a abertura da época de bailes, o primeiro de uma longa série de festejos que se sucediam semanalmente até ao final do verão em honra das Nossas Senhoras Padroeiras das freguesias das redondezas. Por isso, fora preparado com minúcia e detalhe desde o último carnaval. O conjunto musical tinha que ser a sério, não servia um qualquer coça-na-barriga. Normalmente contratavam uma pequena orquestra ligeira. Para lá das violas eléctricas, baixo, orgão e bateria, comuns aos outros grupos de baile, a orquestra integrava sempre um naipe de metais, com saxofone, trompete e trombone de varas. Por vezes, até um acordeão electrónico para os solos de piano e fundos de violinos. E sempre um exaltado vocalista com comprovada potência vocal que gritasse a preceito as rimas dos slows, como que a ilustrar as ganas desesperadas do aperto, do roço.


Eram horas e no Lila os rapazes preparavam-se para partir. A colectividade ficava a trezentos metros, mas não parecia bem ir a pé. Os rapazes tinham que ter um carro, ou pelo menos um amigo suficientemente íntimo que o emprestasse em caso de séria necessidade. Era raro, mas acontecia algumas vezes levar a namorada e a futura sogra a casa. Por isso, tinham que estar preparados. Nessas ocasiões caprichavam na condução. Iam devagar para mostrar prudência e maturidade mas não resistiam a colocar o cotovelo esquerdo na janela para evidenciar altivo desembaraço na condução apenas com a mão direita. E largavam o volante para meter a terceira, num movimento bem definido e elegante, marcado pelo serpentear das omoplatas.Naquela noite eram dez rapazes e dois minis. Cada um aliviou o respectivo proprietário, contribuindo com vinte escudos para a gasolina. Decidiram que o Asdrubal devia ir num dos lugares do morto para não amarrotar o fato. Ainda assim, Asdrubal despiu o casaco, dobrou-o com o forro para fora como vira o Faustino fazer e depositou-o com cuidado no colo. O outro mini já largara na frente para reconhecer o terreno e para ocupar as respectivas posições estratégicas. Asdrubal num exercício de auto-convencimento, repetia para si próprio vais ser capaz, vais ser capaz, vais ser capaz. E cerrava os punhos a dar consistência ao querer. Sentia que estava a viver um momento histórico que lançaria o resto da sua vida. Um momento épico que serviria para dar o exemplo de decisão a filhos e a netos nas hesitações que estes tivessem que enfrentar. Enfim, um daqueles sofridos momentos só superados por quem fazia das tripas coração, num transbordar valente de alma que permitisse mais tarde rir orgulhosamente das dificuldades ultrapassadas.
Chegaram. Asdrúbal, com uma coragem que não lhe conheciam, vestiu resoluto o casaco e investiu sereno e confiante porta-dentro ao som de um tango aprimorado no choro lastimoso do acordeão. Ao contrário dos habituais encontrões necessários para aceder ao salão de baile, toda a gente se desviava, dando-lhe voluntariamente passagem. Parecia que estavam todos à sua espera. Por esse corredor vinha um dos amigos, o Clarau, ao seu encontro com ar preocupado, tentando pegar-lhe no braço, a retê-lo. Asdrubal pensou que ele lhe iria dar mais um conselho de última hora e esquivou-se, confiante, a tão inconveniente cena pública. Tinha resolvido, estava decidido, que lhe saíssem da frente. Com o impulso da decisão rapidamente chegou ao salão de baile. Para sua surpresa, ninguém dançava. O baile ainda não fora aberto. Por isso todos olharam para Asdrúbal a avaliar o seu resplandecente fato azul-marinho. Alguns sorriam, pondo a mão na boca. Outros comentavam para o lado rindo descaradamente. Asdrúbal olhou em volta desorientado, sentindo-se o centro das atenções. O seu olhar fixou-se na orquestra. E então percebeu. Os oito músicos e o vocalista estavam vestidos de igual. Cada qual com o seu fato azul-marinho claro. A encomenda da fábrica de Santiago de Riba Ul tinha sido para a orquestra. Asdrubal por um momento gelou. Gestos e pensamentos. Finalmente, recobrado, deu meia volta e abandonou a sala enquanto tirava com um gesto digno o gancho das calças que se lhe enfiava no rabo."



2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Como dizia o outro.
Estória chata e comprida
Creio que fui e serei o único a lê-la até ao fim.
Penso que o final seria mais interessante se o Asdrúbal tivesse subido ao palco e começasse a tocar flauta

22:56  
Anonymous Anónimo said...

Coitado do Asdrúbal, começou a desgraça logo no nome que lhe tocou em sorte... Há tipos que não fogem ao destino... Olhe o Augusto Santos Silva, por exemplo... Depois das lindas figuras a fazer de voz do dono do 44, aí está ele outra vez na crista da onda, com o nosso dinheirinho a comprar faqueiros de prata de cem mil euros para os banquetes da maralha dos negócios estrangeiros...

14:34  

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