quinta-feira, setembro 14, 2006

A TORRE - 30 Abril 2006



A saída de Seia é para morrer. Depois são 5 Km até passar a Aldeia da Serra. Terríveis, com os autocarros em primeira a largar baforadas de gasóleo queimado. Antes de acabar a Aldeia da Serra parei porque o coração passou os 170 por minuto. Levara com uma baforada de fumo, tossi engasgado, cuspi para limpar o sabor acre e gritei um nome feio à mãe do condutor. O coração não se compadece com esses excessos de disponibilidade rítmica. Deixei baixar aos 140, respirei fundo e arranquei. Mas logo após arrependi-me por ter "queimado" uma paragem, pois aquela rampa acabava 400 metros à frente numa curva à direita e permitiria baixar o ritmo cardíaco para os desejáveis 150 sem ter parado. Mas vá lá a gente adivinhar o caminho para além da próxima curva...

Passei pela bomba da gasolina à direita com o restaurante à esquerda e as crias de "serra da estrela" a uivar em gaiolas de rede. Subi mais uns Kms até começar a descer para o Sabugueiro. Parei para me alimentar. Já tinha feito 9 Km a subir e 2 a descer. Comi uma barra energética e bebi um nectar de pera e o resto de um litro de água, pois atestei o meu bidon de 6,6 dl. Fiz alongamentos. Parei ao todo 10 minutos. Voltei à estrada e subi, subi, subi. Até ao entroncamento à direita para S. Romão. 5 Km de ladeira inclinada como uma autentica parede. Parei no entroncamento, não porque estivesse nos limites, mas para telefonar para o meu carro de apoio - mas não consegui rede. Já estava outra vez com meia água e sem comida. E preocupado com o que ainda faltava. Arranquei de novo mas 3 Km à frente tive que parar porque o coração disparou outra vez para cima dos 170 numa ferradura à direita já depois da passagem pelas condutas de água. A minha preocupação não era a velocidade. Era a batida cardíaca. Desta vez também podia ter evitado a paragem e aguentado mais um pouco, pois menos de um Km à frente atingi o topo e comecei a descer para a lagoa pequena (é assim que se chama?). Lá em baixo, na cova, parei para telefonar para o meu carro que ainda estava em Seia. Estive parado 5 ou 6 minutos. Na altura doía-me o rabo. Consequencia natural de "subir" sempre sentado. Entretanto olhei para o perfil da subida traçado na encosta levantada em frente e comecei a pensar para os meus botões, ou melhor, para os meus velcros e zipers, como é que conseguiria chegar lá acima. Dividi mentalmente em 3 secções - marquei 3 rochas como pontos de referência - e decidi que iria fazer uma da cada vez.
Meti-me à ladeira mas fiz tudo de seguida, ainda por cima com a grata surpresa de ter virado lá em cima à esquerda e deparado com o paredão da Lagoa Comprida. Pelas minhas contas ainda faltariam 2 Km, mas não, já tinha subido tudo desde o Sabugueiro.
Contornei e meti-me pela recta a subir em falso plano. As pessoas à beira da estrada olhavam para mim com aquele ar de "coitado, deve ser promessa..." . A recta começou a pesar muito nas pernas. Pensei que devido ao falso plano que engana sempre quanto ao melhor carreto. Mas a um quarto do final da recta - junto à placa que diz "Centro de Limpeza da Neve a 16 KM", senti as pernas sem força. Não aguentava, mesmo, mais. Era fome. Já não tinha açucar no sangue. Água ainda tinha alguma, e havia a da serra. Mas não queria beber desta porque estava gelada e eu já estava a tremer de frio. O blusão era um N2S de goretex com mangas, mas o suor, o frio e a falta de açucar fez-me entrar em hipotermia. Pensei que era o fim da aventura. Respirei profundamente a sossegar o coração e abracei-me a aquecer encostado à placa que me abrigava da aragem fria que vinha do alto da subida aproveitando o sol que me batia quase de frente. A placa resguardou-me. Deixei de tremer. Finalmente o carro chegou e comi duas bananas e uma barra energética. De imediato me senti melhor. Pelos visto não ia desistir. Troquei de bidon - por um que ainda fora feito em casa com uma mistura de meia lata de bebida isotónica com chá verde e o resto de água. Meti as perneiras na bolsa do blusão porque receei ter frio nas pernas e isso traz sempre caimbras. A partir daí já não me lembro da sequencia exacta dos pormenores do trajecto. Só tenho uma ideia por grosso. Consequencia do automatismo conseguido. Pedalar. Pedalar sempre. Sem pensar muito nas dores. Certinho, com ambas as pernas, arrastando a sola do sapato no limite inferior do circulo, como quem raspa lama da sola. Mudando a posição das mãos - uma de cada vez - para evitar a dormência. Sempre sem forçar. O espírito abstracto, leve, a saborear o cheiro lavado da serra, concentrado apenas no ponto de referência ali em frente. Onde é preciso chegar para só depois escolher outro que me leve um pouco mais à frente. O percurso passou a misturar paisagens diferentes. Por vezes parecia que já estava no planalto. Mas, mesmo assim, subi, subi e continuei a subir. Deixou de ser uma parede com aquela inclinação diabólica da Aldeia da Serra ou da saída do Sabugueiro. Apareceram uns topos acentuados, alternados com falsos planos e com algumas descidas breves. De repente tinha que meter o 29, mas a maior parte do tempo conseguia andar no 26, no 23 e até no 21. Estava nos ultimos 10 Km, e sentia que ia mesmo chegar ao fim. Até à Lagoa Comprida ainda admiti que pudesse desistir. Por não aguentar as dores musculares e, sobretudo, quando faltou a comida. Mas agora tinha que ser mesmo até ao fim. Até porque o pior já passara. Na primeira descida senti muito frio nas pernas. E tinha que colocar o antebraço e a mão esquerda a proteger o peito, na zona do coração e garganta, pois o suor no peito transformava-se em gelo molhado (naquelas descidas de 500- 600 metros, cheguei a atingir 45 Km/H, o que com uma temperatura ambiente de 8 graus significa uma temperatura na pele de 0 graus ou mesmo negativa). Parei para vestir as perneiras. Senti-me muito melhor, mas como tinha as pernas inchadas pelo esforço, fiquei muito apertado. Subitamente com mais consciencia das pernas, receei pelas caimbras, já que ia para a 4ª hora consecuitiva de esforço - a primeira para atingir Seia e o resto a subir. Assim, cada vez que a minha perna direita me dava um sinal ( tenho um músculo na coxa direita que está sempre a tentar saltar para cima dos outros...) eu abrandava o ritmo e por duas vezes fiz paragem preventiva agarrado aos postes amarelo e preto ( guias de altura da neve), sem ter tirado sequer os pés dos engates dos pedais. Parecia um campino do alto do seu Alter agarrado à vara. Ou um centauro, alto e forte, naquela posição que nos permite endireitar os dorsais e sentir o chão tão longe. E hidratava com pequenos goles. Foi na segunda dessas paragens que comecei a ver os cogumelos da Torre ao longe a brilhar no meio das manchas de neve. Ainda faltava tanto...

Na penultima subida - naquela zona de faixas muito largas para o estacionamento dos autocarros - quando só faltava a ultima curva à direita, a perna direita atraiçoou-me. O tal músculo trepou para cima dos outros e quase caí com a dor. Massajei e chorei de raiva. Não me digas que vais morrer na praia. E senti muito frio. Montei, pressionei o musculo com a mão direita, pedalei devagar, muito devagarinho. Aquele troço não era muito empinado e eu tinha cometido um erro. Estava a usar o 21 quando me deu a dor, bem podendo utilizar 3 carretos mais leves. Deveria ter tido outro cuidado. E como o material tem sempre razão a perna direita reclamou. Meti o 29 e cheguei ao entroncamento que vira á direita para a Torre. Aí comecei a ser aplaudido por algumas pessoas que estavam na berma da estrada e inexplicavelmente senti os olhos com lágrimas. "Animô, animô" gritavam-me uns franceses. Não há nada como os franceses para apreciar o ciclismo de alta montanha...

Mas aquele ultimo Km nunca mais acabava (mais tarde disseram-me que aquela recta tem exactamente um Km). De frente para a rotunda da Torre, pedalava, pedalava mas parecia que a rotunda estava sempre à mesma distancia. Fiz o resto muito devagar para não acontecer sobressalto algum. Até tive medo de furar. Cheguei lá acima, dei a volta ao talefe a tremer de frio e de emoção. E já virado para baixo, fiz duas "éguas" e saltei com as duas rodas para comemorar. O que me mereceu um abanar de cabeça, em desaprovação, por parte do GNR de montanha que ordenava o transito. Mas ele sabia lá o que eu já tinha sofrido para ali chegar...

A subida não foi apenas uma experiencia física. Foi também e sobretudo uma experiência emocional. Se calhar mística. Porque nunca me senti sozinho no sofrimento e na dor. Enfim, coisas que nos passam pela cabeça quando somos avassalados pela enormidade da Serra.

Mas o ciclismo é definitivamente o prazer mais doloroso.